Meia Furada

Mercêdes — Mary Bright

Aqueles foram dias tensos!

De repente fui tirada da quarentena forçada por causa do novo vírus e colocada pela vida num avião para Brasília.

Algumas intercorrências: irmã do meio, cirurgia simples, erro médico, entubação, UTI.

A vida me levou mais uma vez para um lugar que procuro ir somente uma vez por ano. Mas tudo está tão diferente este ano! A começar pela pandemia de 2020.

E Brasília se fez presente para mim antes do final do ano, minha costumeira viagem para a cidade-avião de Niemayer e Lúcio Costa.

Minha irmã foi internada e minha família mora lá. E família tem todos os ingredientes para mexer com nossas melhores e piores emoções, com nossos fantasmas. Aqueles que preferimos deixar trancados num quarto escuro da nossa mente. Quem gosta de lidar com seus fantasmas internos? Muitas vezes preferimos mesmo prendê-los, mas eles acabam sempre voltando para nos assombrar.

Há uns dois anos ao voltar de uma viagem bem sucedida a Brasília e eu me refiro a ausência de conflitos, achei que tinha deixado para trás todos os meus fantasmas.

Ledo engano!

Dessa vez bati o recorde, no dia seguinte já queria voltar. Pensei, “mas como assim? Minha irmã do meio ainda está no hospital, pior, na UTI em pleno surto da pandemia, não posso simplesmente ignorar tudo isto e voltar para São Paulo. Preciso ficar. Não foi para dar apoio e carinho que eu vim?”

Decidi apagar minha luz!

Em meus aprendizados descobri que, às vezes, precisamos apagar nossa luz para que o outro possa brilhar, mesmo que eu ainda não saiba muito bem como lidar com isto, porque apagar a luz significa esquecer o ego, este indivíduo interno ora soberbo, ora professor.

Às vezes penso que talvez esta seja a sina do curador. Apagar sua luz para acender a do outro.

Enquanto os dias passavam com minha irmã na UTI, senti que precisava fazer mais do que apagar minha luz. Precisava perder de vez o medo de enfrentar os fantasmas que há muito habitam meu mundo, principalmente quando tenho de ir ao cerrado.

Era um grito de raiva da minha irmã mais nova dali, era uma mania de controle da minha mãe daqui e eu, no meio do olho do furacão, deste turbilhão de emoções, com a luz apagada, pois só assim haveria paz.

Controle! Sempre corri dele e ele sempre me alcançou através das pessoas que amo. Por mais empoderada que eu seja agora, talvez eu ainda não tenha demonstrado a ele o quanto ele é inútil! E as pessoas mais importantes da minha vida sempre me impuseram controle. Há alguns anos, não mais…mas toda vez que tenho de ir à cidade de espaços infinitos e visão do céu de ponta a ponta, ele sempre me encontra, de uma forma ou de outra.

É como uma meia furada a te lembrar que o buraco ainda está ali. Por mais que o sapato esconda o furo, no interior, o buraco está exposto como uma ferida. E ainda que gostemos da meia, é preciso seguir dois caminhos para nos aliviarmos do desconforto que uma meia furada nos causa: ou jogamos fora ou cerzimos, para que o furo não nos incomode mais.

Neste caso, gosto da ideia de remendar a meia como os japoneses remendam os vasos de cerâmica quebrados, usando a técnica Kintsugi: a beleza das cicatrizes da vida.

Nesta técnica centenária, os vasos de cerâmica recebem um verniz polvilhado com pó de ouro, que irá valorizar aquele vaso e aquele remendo. Será um vaso único, com toda a sua nova beleza.

Pois bem, naqueles dias tensos e intensos onde as emoções galopavam nuas pelo Planalto Central, peguei minha meia furada e a cerzi com o fio de ouro mais brilhante que encontrei no meu coração: o meu amor.

Minha irmã desceu da UTI para um quarto no hospital e a vida me levou para lugares inimagináveis em uma pandemia: uma cachoeira em Salto de Corumbá, em Goiás, um Deck onde quase todos os dias eu saudava o pôr-do-sol e ouvia o barulho do Lago de Brasília, além do ressoar do tilintar dos copos de cerveja que minha mão e a mão da vida segurava ao brindar.

Mas o fio de ouro que tampou o furo da minha meia foi além, despertou sentimentos adormecidos em minha família e em minhas últimas semanas no Planalto, pude ver as paisagens mais lindas que a troca de amor pode proporcionar: as belezas da alma!

Já de volta a São Paulo, enquanto meus dedos procuram as letras no teclado do meu celular para escrever este texto, recebo a notícia de que minha irmã do meio se recupera em casa. A melhor notícia do ano!

Sim, ainda tenho muitas meias furadas para cerzir com os mais belos fios de ouro que eu puder encontrar em meu interior, para dar um novo brilho e design às minhas cicatrizes da vida, gostando de mim como sou: quebrada e nova, única e em permanente mudança.

O que seria da vida se não fossem as meias furadas?

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